sábado, 10 de maio de 2008

A FLEUMA BRITÂNICA E O MITO DE COIMBRA E DO MONDEGO


Horta da Silva

Ex-Director do INETI (Coimbra)
Escritor (horta.silva@sapo.pt)

Depois de duas semanas estivais, o frio e a chuva estão de volta, a pontos de não se saber ao certo se vivemos restos de um Inverno incaracterístico recheado de temperaturas acaloradas, ou se estamos perante a despedida antecipada de um qualquer Verão de S. Martinho perdido na escala do tempo. Quando toda a gente já andava de manga espanada, começou a nevar nos Pirinéus, no Cantábrico e na Serra da Estela, granizou no Minho, na Beira Litoral e na Estremadura, caíram trombas de água a sul do sistema Montejunto-Estrela, choveu a bom chover no interior do Alentejo e adensaram-se nevoeiros nas praias entre o Cabo Carvoeiro e o Cabo de S. Vicente que despediram as nortadas da costa portuguesa. Com algum alarido, conjectura-se sobre o desaparecimento das tradicionais estações do ano e sobre as grandes mudanças climáticas que vêm a caminho, o que traz, por arrasto, um desejo acrescido de espreitar pelo buraco do ozono. E, face a esta singularidade, dei comigo perdido em Lake District (Inglaterra) onde na década de sessenta tinha ido, sob condições climatéricas adversas, ver umas quantas barragens em construção e contactar ao vivo com depósitos de “boulder clay”1 que incluíam matacões e calhaus de rocha trazidos da Escandinávia pelas calotes de gelo que, durante as últimas grandes glaciações, abraçaram as ilhas britânicas.
Formávamos um grupo heterogéneo de estudantes de pós-graduação, onde pontuavam ingleses, irlandeses, canadianos, israelitas, indianos, italianos e um português. Numa das noites, fomos até um “pub” em Whitby onde um trio formado por um rapaz e duas moças tocava e cantava música “folk”ao som de um violino e de duas violas, trio que se desmultiplicava em esforços para tentar aquecer um ambiente taciturno e introspectivo. Os nevoeiros na costa inglesa são espessos e saem do mar dispostos a trepar as falésias e a deglutir os anfiteatros das povoações, casario a casario, cobrindo a paisagem remota e próxima com um denso manto sombrio. É uma forma de manter o crepúsculo ao longo do dia, deixando ver o que resta ao pé dos olhos que, volta e meia, aparece e desaparece sob a forma de silhuetas difusas e fantasmáticas. Alguns dos meus colegas, que sabiam que eu arranhava viola, armaram-me uma emboscada e, em pouco tempo, vi-me no meio do conjunto a ensaiar acordes musicais que nada tinham a haver com aquelas paragens. A noite foi alegre, o “pub” esgotou e os ingleses e demais gentes entoaram em coro o refrão “Canto o Fado”. Quando fui perguntar ao “barman” quanto tinha a pagar por aquilo que consumira, o homem entregou-me uma girafa de “export beer” e de mão bem estendida disse “God bless you”2. A noite acabou numa enchente de pasmar e, no meio da fleuma britânica dissolvida num harmonioso e amplo convívio, soube que um dos professores que nos acompanhava conhecia e admirava Coimbra. Segundo confessou, em redor de uma mesa imersa numa atmosfera de verdade, o surgimento de Coimbra aos olhos do viajante que desce pela antiga estrada de Lisboa é qualquer coisa que perdura na mente de quem gosta de deambular pelo mundo à procura do que é belo. E mais espantado fiquei quando acrescentou: «em Coimbra, vi um nevoeiro a sair do rio que deglutia o anfiteatro da cidade um pouco à maneira do que vimos hoje entre Robin Hood´s Bay e Whitby...» mas não mencionou nenhum lobisomem.
Ao iniciar o romance “O Ambientalista, a Esfinge Egípcia e a Face Oculta da Verdade” lembro-me de ter recorrido a três citações relacionadas com o contexto da narrativa, entre as quais se encontra um pensamento do célebre filósofo e teólogo dinamarquês do séc. XIX, Soren Kierkegaard, que diz: «a vida pode ser entendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para a frente».
O “Mito de Coimbra e do Mondego”, com ou sem lobisomem, tem fama e foi tema que apaixonou grandes vultos das letras, alguns dos quais passaram por esta terra para levar, dela, não mais do que um pouco de saber, rebeldia e uma mão-cheia de ilusões estampada nos contornos da memória, ilusões que acabaram por fazer história. Porquê? Pela simples razão de essa mão-cheia de ilusões se ter antecipado ou seguido o conteúdo do pensamento de Kierkegaard, consoante os autores tivessem vivido antes ou depois deste insigne filósofo. Infelizmente, Coimbra parece cativa do passado por um enlace saudosista. Quem olha Coimbra e o Mondego de hoje não pode deixar de anuir que estamos perante cenários, sociedade e estado do conhecimento completamente diferentes dos tempos em que o mito coimbrão tomou corpo. Por isso, revisitá-lo, do ponto de vista literário, exige uma estrutura a condizer com a arquitectura arrojada das novas pontes, exige uma simbologia que se revê no dia-a-dia em que vivemos e exige um estilo que se projecte no futuro.
E por tudo isto um pouco, uma pergunta fica suspensa na perplexidade dos dias que passam: «quando é que a edilidade passa a entender a cultura olhando para trás e a implementar a vida cultural da cidade olhando para a frente?»

1 Sedimento de origem glaciar, formado por pedregulhos e cascalhos envoltos em argila.
2 Deus te abençoe.
Publicado no Diário de Coimbra de 25-4-2008

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