quinta-feira, 17 de julho de 2008

O que se entende por Serenata-Concerto de Coimbra?

jorge cravo (1)

Várias são as definições para Serenata.
Numa pequena publicação de José Bento da Silva, intitulado Dicionário de Italianismos Musicais, editado em Braga, em 1998, onde o autor reuniu os termos italianos ligados à música que se encontram dicionarizados pelos principais lexicógrafos da língua portuguesa – e para o qual consultou 14 dicionários portugueses, de 1712 a 1990, e 15 dicionários estrangeiros, de 1967 a 1995, – Serenata surge com nove definições. Nem todas referindo-se à mais comum definição de «música que de noite os galantes fazem na porta de suas damas» (a definição mais antiga, datada de 1727), mas, referindo, também, que Serenata é um «concerto vocal ou instrumental», «música de conjunto instrumental, geralmente cantada», «música que deve ser melodiosa e simples», etc.
No entanto, Tomás Borba e Lopes-Graça, no Dicionário de Música do qual são autores, datado de 1956, têm para Serenata uma definição que apraz registar. Definem-na como «designação genérica de várias modalidades de música instrumental ou vocal, em princípio destinada a ser executada ou cantada ao ar livre, ao anoitecer». E este “em princípio” é aqui muito importante. Porque não define um exclusivo. Ou seja: a Serenata pode não seguir o princípio de se realizar «ao ar livre», e ser executada em ambiente fechado, que não deixa de ser uma Serenata; assim como pode não ser realizada à noite ou ao anoitecer, que também não deixa de ser uma Serenata. Dependerá sempre de alguma ritualização subjacente que se queira preservar, redefinindo-a e actualizando-a. É aquilo a que o sociólogo Carlos Fortuna designa por destradicionalização. Ou seja: depurar o ritual até lhe imprimir uma nova dinâmica mais de acordo com o tempo que se vive.
De muitas daquelas nove definições, uma certeza temos: é que a Serenata não é, única e exclusivamente, um ritual de cortejamento. Ela não se esgota debaixo da janela de uma rapariga. E aqui em Coimbra, tanto o povo como os estudantes, sempre tiveram por hábito cantar serenatas que não tinham apenas como intenção última o cortejar uma mulher: a Serenata da Queima das Fitas, as serenatas fluviais no Mondego, as serenatas tipo estudantinas pelas ruas da cidade, as serenatas de Verão das noites da Canção de Coimbra, etc. Assim, pensar-se que falar de Serenata em Coimbra é falar de serenatas ao luar debaixo da janela de uma donzela, e reduzir a Canção de Coimbra à prática serenil de cortejamento é ter do conceito de Serenata uma visão muito pobre e pensar que os seus cultores são todos uns nostálgicos medievos.
Tudo evolui, e a inteligência de quem cultiva esta Canção está na capacidade de redefinir conceitos e de adaptar práticas ritualísticas aos tempos de hoje, de maneira a preservar manifestações tradicionais que não colidam com a vivência do século XXI, contribuindo-se assim, para a diversidade cultural preconizada e defendida pela UNESCO.
Numa altura em que a Canção de Coimbra vive um ciclo de experimentalismos vários, é tempo de repensar a Serenata de Coimbra e retomá-la numa nova e diferente abordagem: a que de um Concerto se trata. Entendendo nós a definição de concerto com base na «ideia de contraste e de confronto que está presente na etimologia da palavra».
O que se pretende, pois, é confrontar uma prática muitas vezes abusiva, uma moda e mania, de tudo se aplaudir a qualquer momento (por vezes completamente longe do fim da interpretação, e outras vezes, sem se deixar respirar o silêncio que emana do final de uma música), com a perspectiva de uma Serenata de Coimbra como uma «composição de dimensão considerável», em que cada tema interpretado deverá ser visto como um andamento de uma peça sinfónica (e todos nós sabemos que entre os andamentos de uma sinfonia não há aplausos, por muito que o público queira aplaudir). Assim, a Serenata-Concerto deverá ser executada sem que o público se manifeste entre cada tema interpretado, podendo, se assim o entender, manifestar-se no final da execução da Serenata como um todo. Aos intérpretes, restará também o silêncio, fazendo apenas, se assim o entenderem, a apresentação dos temas, um a um, dois a dois ou três a três, sem mais delongas. Será pouco? Será ambiente de casa funerária? Não me parece. Saber ser diferente, nos tempos que correm, é saber fugir ao “política e culturalmente correcto”. O que exige coragem. Para além do mais, hoje em dia, ser-se moderno é também ser-se tradicionalista. Numa dialéctica salutar. Porque não se pode ser moderno onde não exista tradição
Para colmatar a ausência de uma comunicação quase permanente com o público, a apresentação de uma brochurazinha com a indicação do nome dos intérpretes, o programa que se vai interpretar, com o título e autorias dos temas, e um texto explicativo para o momento é algo premente e que muito mais perdurará no tempo do que explicações sem nexo e muitas vezes descontextualizadas do espectáculo em questão.

Assim, como Serenata-Concerto de Coimbra, teremos:

- música para concerto instrumental, ou seja, uma Serenata-Concerto de Guitarra de Coimbra, o chamado “Concerto para Guitarra”, com as designadas “variações ou guitarradas de Coimbra”;

- música para concerto cantado e tocado, e teremos aqui a expressão musical mais simples de Serenata-Concerto, com guitarra-viola-voz ou o recurso a pequena Orquestra de Cordas e Voz;

- um canto nocturno ao ar livre, popular ou erudito, como expressão de uma Serenata-Concerto num cantar livre em qualquer ponto da cidade, pelo simples prazer estético-musical do próprio Canto, a solo ou em coro, numa das poucas cidades onde deveria ser permitido e defendido por lei, cantar pelas suas ruas, de noite ou de dia.

Quanta à ausência de palmas entre os temas: só se sentirá verdadeiramente defraudado quem se julgar um grande artista e credor de palmas a todo o momento para assim sentir inchar o ego.
A qualidade de um artista, seja um pintor, um escultor ou um músico, vê-se pelo reconhecimento do seu trabalho. Como? Levando o público, pela qualidade do trabalho visto ou escutado, a adquiri-lo. As palmas são sempre efémeras. O produto da sua criação, não.

Quero com tudo isto dizer que este ciclo experimental de Serenatas-Concerto de Canção de Coimbra – e porque estamos na casa/sede de uma Orquestra – deverá aproximar-se, o mais possível, do ritual próprio de um concerto de música clássica e, como tal, peço-vos que experimentem deixar respirar a música, experimentem sentir o silêncio entre os temas – que também é música – e só aplaudam a Serenata, no fim, se entenderem que os intérpretes têm direito ao vosso aplauso e carinho. Esta será também uma maneira de se acabarem com as inestéticas tossidelas, grunhidos e roncos que, desde 1978/79, as pessoas pensam ser uma forma de aplauso entre os temas, na Canção de Coimbra, e que mais não passa de ruído impróprio de seres racionais e próprio de pitecantropos.
Sejamos, pois, pedagógicos para sermos diferentes.

[1] Coimbra (n. 1961). Licenciatura em História (1988) e especialização em Ciências Documentais (1991) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC). Bibliotecário na Biblioteca Municipal de Coimbra. Cultor de Canção de Coimbra.
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Nota: Texto lido momentos antes da Serenata - Concerto de Coimbra pelo Quateto de António José Moreira.

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