sábado, 22 de novembro de 2008

MEMÓRIA DE ADRIANO

por José Henrique Dias
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Nas tuas mãos tomaste uma guitarra
copo de vinho de alegria sã
sangria do suor e de cigarra
que à noite canta a festa da manhã.
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Foste sempre o cantor que não se agarra
o que à terra chamou amante e irmã
mas também português que investe e marra
voz de alaúde e rosto de maçã.
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O teu coração de ouro veio do Douro
num barco de vindimas de cantigas
tão generosas como a liberdade.
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Resta de ti a ilha dum tesouroa
jóia com as pedras mais antigas
não é saudade, não! É amizade.
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(Ary dos Santos)
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Chegou a Coimbra para estudar Direito. Ido do Porto, onde nasceu, na Rua Formosa, a 9 de Abril de 1949. Fez-se homem no envolvimento do trabalho, da determinação das gentes da sua terra, gente que labuta e sente e sabe o que vale, sem dobrar a cerviz. É a pronúncia do Norte, reduto de resistências e de arrancadas pela liberdade, ele cidadão de corpo inteiro para ficar na sépia do retrato.
Chamava-se Adriano. Com um só nome foi passando entre os dedos das amizades. Adriano Maria Correia Gomes de Oliveira constava nas certidões, Adriano Correia de Oliveira, nos primeiros registos fonográficos.
Chega a Coimbra em 1959. Queria outras músicas para a guitarra eléctrica, canta Modugno, Aznavour, Bécaud
Estavam vedados os lugares no Conjunto da Tuna Académica da Universidade de Coimbra. Pontificavam o José Niza, o Daniel Proença de Carvalho, o Rui Ressurreição. Não havia lugar para outra guitarra eléctrica. Em pouco tempo, está nas ruelas de Coimbra, na Rua da Matemática da sua República, a Rás-Te-Parta, canta na Sé Velha acordes das guitarras do Portugal, dos Melos, do Octávio Sérgio, das violas do Rui Pato, do Durval, do Moutinho. Mas tudo foi depois.
Entre os companheiros de estudo e de estúrdia, na Invicta, no Colégio Almeida Garrett ou no Liceu Alexandre Herculano, preocupado com as artes e a formação das gentes de Avintes, para onde foi quase do berço e fez também terra sua, tinha dedos para a guitarra recortado corpo de mulher, tecia acordes suaves quando primaveras soltam fortes vibrações e mais além para amanhãs que cantam, acreditava e queria e gritava, quando em casa de Manuel Alegre conhece Luiz Goes e António Portugal. Aprende fados e baladas que canta e logo grava, Ninguém conhece no rosto/ o que a nossa alma inspira, que voz aquela e que respiração, mas Adriano
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Não era só a voz o som a oitava
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queria ir ao mais longe, onde todas as inquietações se desinquietam, não era só cantar no acima de Bettencourt, a tal oitava, porque um capricho, mas por uma eterna necessidade de superação de todas as capacidades, todos os desejos, toda uma vida
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que ele queria sempre mais acima
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Sempre algo de novo acontecia, que vinha nele uma outra boa nova, Coimbra regurgitava para a luta e a liberdade, coarctada em cada esquina, era a crise e o ano 62, a Pide batia às portas e a escola despedia, os moços despertavam para a luta e o futuro, raparigas e rapazes, que não valia já cantar capas velhinhas e caixões forma bizarra, capa sim, mas rosa negra, bandeira da liberdade, que não definhava no seu olhar claro, nem se tolhia no medo das vigilâncias.
Era preciso ser outro o dia e a viragem porque estava para além dos pequenos cálculos, dos baixos compromissos.
Adriano era o revolucionário que desperto exaltava, atento requeria, determinado conspirava, porque tudo nele era o tom maior que nos mobilizava, chamava para um porvir que queríamos novo, renovado, porque Adriano pensava o país, o mundo, o outro, nada era seu,
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nem sequer a palavra que nos dava
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Que nos dava o sinal chegada a hora, com o Douro na alma e noites de Mondego pelas veias, poeta e cantor, músico em sonho e luar, despojado de tudo o que não valia a pena, empenhado em todos os momentos, em movimentos, solidário, ansiosamente solidário, rigorosamente solidário, anjo grande na montanha da palavra que nos dava, num cantar e vibração únicos, e a esperança
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restituída ao tom de cada rima.
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Olhava em explosões de manhãs claras, ria com casquinadas de ribeiras para o menino rio da sua infância, o arco férreo da ponte e o sonambolismo da Serra do Pilar, preso no sortilégio da Ribeira, com amargura de lágrimas pelos famintos. Gigante com gestos tisnados de mãos abertas aos milagres possíveis, em Coimbra onde a noite descia porque a hora era o pesadelo da ditadura, ao pensar nos tarrafais da vergonha histórica, mesmo se bailaricos o levavam, canta canções populares, adensa versos do Alegra, Trago a minha alma presa/às promessas que morreram algo em Adriano, sempre
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Era a tristeza dentro da alegria
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Porque estava já assaltado pelo seu compromisso com a vida de militante e cantava os tambores da morte anunciada, dos que partiam para a guerra injusta, onde caíam companheiros, onde ficavam irmãos de cigarros ao meio para as noites de esperança, quem me dera em Maio, em cada verso alheio ou verso seu, em cada balada, cada grito, cada gesto, mesmo o sorriso
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era um fundo de festa na amargura
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como se impregnasse a alma de presságios de futuro, ele que pegou no poema do Alegre e com lágrimas embebeu a canção que secou na garganta quando a morte levou o seu companheiro de República, o Azeredo Pais, ficou parado, paralisado, todo mágoa e revolta, mudo, ave ferida no esboço do voo, asas cortadas onde a palavra perdão não se escrevia, olhava o que viveram e o que foram, meninos que a guerra arrancara do colo da alegria, ficava a dor, mordida a raiva
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e a quase insuportável nostalgia
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Saudade dum futuro que teimava em não chegar, porque Abril esperava fazer-se mês e promessa, Abril demorava, só as canções, as palavras do Manuel Alegre, do Manuel da Fonseca, do Guedes, do Urbano, do Assis, palavras suas, de tantos, quando metralhadoras cantavam longe e a morte sacudia e levava nos sons do seu canto tantos meninos de sua mães, mas eram as palavras de Alegre que mais apeteciam, canto e armas, em plainos abandonados de guerras que eram de outros, que nele era a paz e a fraternidade entre os povos, também no aperto do coração dos que partiam, nas malas de cartão para longes terras, e todos, todos se vão, na esperança de outra vida, sem braços para cortar o pão nos versos de Rosalia que Adriano cantava com uma tristeza por dentro da voz, e outras mágoas
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que trazia por dentro da ternura.
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Quem com ele privou sabe como tudo nele era a vontade de fazer um outro mundo, onde a paz e a justiça social moldassem a alegria de viver, onde os poderosos não rebobinassem o bater das botinas dos senhores morgados, a regatearem o suor no pão, nas magras jornas a dignidade intocada. Quatro coisas quer o amo do criado que o serve/deitar cedo cedo erguer/comer pouco andar alegre.
Quanto se enternecia se olhava, renascia a criança fora dele que nele morava, e ficava na distância amarga o seu retrato em movimento, Tejo que levas as águas
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O corpo grande e a alma de menino
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A eterna criança que o ser poeta obriga, poeta da palavra cantada como ninguém sabia, porque Adriano sabia empurrar a palavra para que fosse arauto e destino, mãos em concha, olhando o tempo e o silêncio, mudava as coisas, o seu canto, entre 1960 e 1971 todos os anos gravava, e em noventa canções que gravou dava e
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trazia no olhar aquele assombro
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olhar desperto para o longe e a miragem, voluntário de todas as vitórias, que excedia em coragem o que a outros faltava, porque o tempo lhe reservaria traições e ele pisava a vida na esperança, chegou Abril e os cantores de intervenção juntavam-se, alguns de recente conversão, os alinhamentos ideológicos clivaram vontades, esboçaram moções espúrias, tudo foi suportando porque era de outra massa, esperava chegar e não partira, partia sem adivinhar onde chegava, tudo em Adriano tinha aquela subtil dimensão
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de quem queria caber e não cabia.
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De viola a tiracolo calcorreou eternidades e deu-se aos homens e às causas sem nada em troca esperar, que pouco queria para além do quotidiano do pão repartido, do vinho de mão em mão.
Companheiros de antes, camaradas, a quem se devotou, vieram pedir-lhe contas por um nada, ele que passou a vida a cantar a troco da alegria de confraternizar.
Ficou ferido a um canto e aconchegou como pôde a alma, sem um lamento ou queixume que se ouvisse longe, como mereciam, em gestos lentos de desprendimento, foi andando pelos caminhos mais estreitos que a vida lhe foi tecendo, cruel e matreira, a carne esmaecia e poemas a acender lareiras em noites intermináveis de conversas de amigos, os que sempre ficaram, e o olhavam alarmados, foi calando a mágoa, guardava os ideais e assim ficou
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Os pés fora do berço e do destino
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Era já tarde, empalidecia, gasto na dor que ficou, sem um lamento que não fosse um ai, de morte que mataste Lira, menino grande a murmurar a canção suprema, do colo de sua Mãe se desprendeu. Corria Outubro, dia 16, 1982.
Não dobraram em Coimbra os sinos da velha torre. Houve silêncios e melancolia. Num céu de chumbo e chuva miudinha.
Correu a notícia, esperada talvez, mas os amigos nunca querem a palavra negra, que a voz de Adriano ressoava, em todos nós, não cale o vento a desgraça, que há ainda um outro alguém que resiste, e cada um de nós vai dizer não.
Caiu a noite, que dia fora, sei lá agora, fechou os olhos, calou a voz, para onde fora
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alguém o viu partir de viola ao ombro.
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Talvez fosse pelo Zeca, pelo Portugal, por outros, cantar a trova, o vento passa, onde a candeia alumia esta desgraça, ouve-se a trova e fica um frio que nos trespassa, entre gotas de chuva fica o poema, a voz, canção com lágrimas, à tua espera, em cada Outono não há lisboas, o teu retrato em cada rua onde não passas
Coimbra longe, num tempo breve, que fica em nós, ouve-se a trova, corre a notícia, o Adriano.
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Era Outubro em Avintes. E chovia.
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Que não se cale a dor e a revolta, aqui estamos, hoje, anos volvidos, em sua terra para uma qualquer palavra que nos mereça, que ele entre nós agora fica, agora fique, à espera de ouvir o que soubermos, honrar sua memória neste muito obrigado, companheiro, obrigado irmão, damos as mãos nesta noite em que trazemos as canções que cantaste, que o sorriso é teu, onde estiveres, ficas em nós.
Retrato de corpo inteiro também a alma, inteiros neste retrato que o Manuel Alegre teceu e a partir dele construí, neste dia, Novembro 15, esta evocação que me pediram uns moços do teu Porto, que te quiseram dizer uma palavra, que eu não fui capaz e tanto me esforcei por te dizer. Só o poema.
Talvez pudesse ouvir-se ali uma viola, talvez pudesse subir de manso a tua voz
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Adriano
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Não era só a voz o som a oitava
que ele queria sempre mais acima
nem sequer a palavra que nos dava
restituída ao tom de cada rima.
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Era a tristeza dentro da alegria
era um fundo de festa na amargura
e a quase insuportável nostalgia
que trazia por dentro da ternura.
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O corpo grande e a alma de menino
trazia no olhar aquele assombro
de quem queria caber e não cabia.
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Os pés fora do berço e do destino
alguém o viu partir de viola ao ombro.
Era Outubro em Avintes. E chovia.
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Texto lido pelo autor na Grande Noite do Fado Académico, realizada no passado dia 15, no Mosteiro de S. Bento da Vitória e organizada pelo Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP). Adriano Correia de Oliveira foi o homenageado.

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