domingo, 5 de abril de 2009

No terceiro aniversário da morte de António Portugal

Uma Guitarra chamada Portugal *

Paulo Sucena

Quando ouvi pela primeira vez António Portugal tocar guitarra, por meados dos anos 50, percebi que aquela era uma guitarra em visita ao amor, expandindo-se, forte e lírica, sob a arcada de um olhar suave e vibrante, tímido e ousado, onde para sempre ancoraram alguns dos seus acordes que Valsa para um tempo que passou intenta serenamente recuperar. Era uma guitarra de sombra impulsionada por cordas de sangue, era porventura a música ansiada pela jovem mulher do poema de Herberto Helder. Essa era então a guitarra de António Portugal tocando no alto da minha adolescência e muito para dentro.
Era uma guitarra que integrara sabiamente alguns dos registos do seu mestre Flávio Rodrigues, barbeiro na velha Alta, que lhe mostrara em peças como as Variações em Ré Menor, as possibilidades musicais de um instrumento aparentemente pobre mas que permitiu a Flávio Rodrigues dar-nos, no seu Ré Menor, uma pessoalíssima visão da inconsútil nostalgia que veste a cidade de Coimbra. Guitarra que continuara o seu caminho de pesquisa, de estudo e de afirmação pessoal com António Brojo e as violas de Aurélio Reis e Mário de Castro, nos campos da composição e dos acompanhamentos de fados interpretados por alguns dos nomes cimeiros da década de 50 - José Afonso, Fernando Rolim, Luiz Goes, Machado Soares, entre outros.
E com o tempo ela foi-se transformando numa guitarra múltipla. Ora tangida em desafio à potente voz de Fernando Machado Soares que, solitária, disparava para as cercanias geladas do Si agudo, numa tensão de morte, como se o canto devesse atingir o auge sobre o bico de um punhal antes de esmaecer, amargo e doce, em terra sigilata. Ora se nos revelava uma guitarra de paixão jogando um jogo tenso e quase perfeito com a voz de Luiz Goes - uma voz de sedução - cuja resultante são esses objectos imperecíveis da música coimbrã, registados no disco do Coimbra Quintet que integrava ainda Jorge Godinho como 2ª guitarra e as violas de Manuel Pepe e Levy Baptista. António Portugal era uma guitarra voadora, dedilhada entre o sal e o sol como se fora uma tempestade de neve ardendo sob(re) o canto de Luiz Goes, dono de uma voz como outra não houve em Coimbra assim tão musical, tão quente e expressiva, tão suavemente dúctil, com um registo médio admirável, voz assumida com uma de tal modo forte e íntima entrega aos seus ouvintes que, talvez por isso, lembre essa amada figura dos teatros líricos mundiais que se chamou Beniamino Gigli.
Depois foi uma guitarra viageira estremecendo o coração de alguma Europa com os ritmos do coração português, saudoso e aventureiro, terno e vibrante, austero e excessivo, uma guitarra tangida entre o eu e o tu, projectando um halo fraterno e solidário numa Europa que caminhava, um pouco cega, para uma "era do vazio".
Mas eis que de súbito tudo se movimenta e a guitarra de António Portugal entra velozmente pela poesia ou a poesia descobre a sua música ou ambas as coisas acontecem simultaneamente e a guitarra transfigura-se na busca e recriação dos sentidos da poesia de Manuel Alegre e da de outros estudantes de Coimbra como António F. Guedes e Luís Andrade. Torna-se uma guitarra apaixonada pela pátria portuguesa e pelo seu povo. É uma guitarra ora lírica ora elegíaca ora heróica, engendrando sua inovadora música e a fonte de onde brotariam as vozes singulares de Adriano e António Bernardino. É uma guitarra de resistência, de combate, e de esperança, num Portugal de terra e água, por vezes, de raiva e mágoa. Se no transcurso do tempo a poesia de Manuel Alegre foi um permanente motivo de inspiração para António Portugal por seu turno a guitarra deste é com certeza o referente de uma das mais constantes e complexas metáforas da poesia do autor de "Praça da Canção". Aliás a década de 60 delimita um tempo extremamente fecundo da Academia coimbrã não só no campo musical mas também nas áreas do Teatro e da literatura. Basta lembrar que Praça da Canção fora precedida, nas edições Vértice, por Cuidar dos Vivos de Fernando Assis Pacheco e por Corpo de Esperança de José Carlos de Vasconcelos e por colectâneas como Poesia Útil e Poemas Livres ou seja a produção intelectual e artística da Academia acompanhava a sua movimentação político-social contra a ditadura e a guerra colonial e em prol das liberdades democráticas.
A morte prematura de António Portugal impediu que a sua guitarra de lume e água pudesse organizar e harmonizar a sua memória recente ou seja, perdeu-se algo que seria mais uma vez surpreendente: ouvirmos António Portugal escrever um pouco da história deste tempo ou, se preferirem, a pintar uma renovada Aguarela Portuguesa.
Não o fez porque porventura já não lhe apetecia vencer esse desafio. Reflectindo sobre o sentido do mais profundo e autêntico das palavras que lhe ouvi, no último ano de vida, concluo que António Portugal estava mais virado para a produção de um límpido testamento do que para o acrescento do legado musical que nos deixou. Já era, sem o sabermos e sem ele muito reflexivamente o saber, uma guitarra em despedida. É pelo menos assim que a ouço em Variações inacabadas (seu último disco) ao lado de António Brojo (com quem se estreou no mundo discográfico) de cuja guitarra com cordas de puro e lírico linho se desprende, cintilante, como que uma sonoridade branca no meio de uma noite escura.
A guitarra de António Portugal emudeceu para sempre em 26 de Junho de 1994, tornando mais amarga a corda da nossa tristeza porque nesse dia se apagou o fogo dos seus bordões. Todavia creio que na hora em que me aprestar para partir gostaria de ouvir a guitarra de António Portugal a tocar em lá menor - essa tonalidade de apaixonada emoção repassada de uma fina melancolia - por dentro do mais inextricável, intenso e íntimo silêncio de uma vida.
* Texto sobre António Portugal, publicado pelo "JL" 3 anos após a sua morte.

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