terça-feira, 14 de abril de 2009

Memória de Adriano

Paulo Sucena
*
Durante vinte anos varámos dias e noites, por vezes a fio, em intermináveis diálogos. Das coisas da vida, das coisas belas, surpreendentes, apaixonadas da política, das cantigas e da poesia, das guitarras, conversávamos.
Esse tão fraterno tempo, pejado de tantas lembranças, vivido em desvairadas terras e lugares, partilhado de forma inigualável com tantos amigos, balanceado entre angústias e esperanças, tristezas e alegrias, esse tempo ora tenso ou distenso, ora amargo ora eufórico, tempo em que por vezes só a amizade e a convicção com que apostávamos nas coisas que elegêramos na vida permitiam vencer desilusões e quebrar o arame de solidão que em horas estremes sempre se nos enrola aos pulsos – esse tempo foi tão vivido e está tão vívido dentro de mim que não é possível narrá-lo. Aliás nem ele todo e o tudo dele cabiam no espaço que me é destinado. Que a memória deixe então escorrer de si, ardentes, duas ou três lembranças para que fiquem como lágrimas geladas a assinalar o percurso de uma amizade como pouquíssimas outras construí na vida. Talvez registar aqueles inextricáveis momentos em que, depois de termos discutido coisas sérias, horas e horas, sentíamos o estranho impulso de uma incontornável deriva, com trajectos e com consequências sempre imprevisíveis, mudávamos subitamente de agulha e dávamos por nós na Boca do Inferno tentando perscrutar na fúria das ondas a mensagem do Aleister Crawley que o Pessoa mansamente esperou, a esbagaçar o tempo, a régua e compasso, nos polidos mármores do Martinho da Arcada.
*
Porém, à medida que o tempo passa, o que de mais fundo me vai ficando na memória é o dia em que o Adriano entrou na minha casa de uma forma diferente de todas as outras. E quantas elas foram!... Trazia debaixo do braço, quase escondidas, as Cantigas Portuguesas – o seu último disco – gravadas há muito tempo e por isso ansiosamente esperadas pelo cantor. Naquela altura, era em minha casa e na do Vitorino que o Adriano procurava resguardo para a sua ternura em carne viva e para o seu afecto magoado, e era aí também que descansava um pouco dessa terrível solidão que, de já tão surda e tão cega cavalga sempre até se despenhar na morte. Por aí ele se consumia e não por quaisquer abalos ideológico-partidários. Só quem não conheceu o Adriano pode pensar isso. O atleta, o ás nas travessias do Douro, o campeão de Voleibol, foi passível de um debilitamento precoce, mas o Adriano, o homem de fundas e firmes opções político-ideológicas jamais definhou e jamais confundiu o seu ideal político com atitudes singulares deste ou daquele. Mas voltemos àquela tarde. Colocado o disco no aparelho, gastámos o dia a ouvi-lo uma vez e outra vez e outra e outra. Só mais tarde vim a perceber como é demorada – tão demorada! a despedida de nós dentro de nós. Ou talvez ainda não o fosse mas apenas uma lenta e difícil passagem para um novo edifício musical suscitado por um poema de Eugénio de Andrade, de que muitas vezes me cantou o primeiro verso (“nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas”) vestido com uma melodia lindíssima. O certo é que o poema ficou por cantar, como permaneceram por musicar os poemas do Manuel Louzã Henriques – uma das referências de Adriano de que de vez em quando me falava, lembrando uma noite em que até às cinco da manhã demos volta aos cadernos e às bobinas onde o Manuel Louzã Henriques tem sepultada a escrita da sua juventude. O mesmo aconteceu com um disco para crianças, pensado e discutido exaustivamente por nós entre Outubro de 1973 e Abril de 74. Igual sorte teve um disco de fados de Coimbra que Adriano criteriosamente seleccionara e se ficou pela apresentação de alguns deles, acompanhados à guitarra por José Lopes de Almeida, um dos marcos na geografia afectiva de Adriano.
Não posso deixar de referir que a aproximação da morte (e Adriano deu-me mostras, como à frente contarei, de que sabia que ela vinha cedo) fez recrudescer em Adriano o gosto de cantar fados de Coimbra num aceno romântico ao nunca mais. Guardarei sempre na memória o fado da Sé Velha (“aquela moça da aldeia…”), cantado num automóvel, em viagem de regresso a Lisboa, com o Fausto no banco de trás, a inventar, de forma brilhante, os acordes que permitiram ao Adriano uma fantástica, inigualável interpretação (e estou a lembrar-me do Zeca, do Paradela de Oliveira e do Menano…). A essa lembrança junto outra – a daquela espécie de despedida, em Águeda, no último ano de vida, em casa do meu pai, em que ele cantou uma série interminável de fados (incompletos; às vezes só os dois primeiros versos) que levavam o meu pai a dizer, maravilhado, só cá falta a guitarra do meu amigo Paulo de Sá. Noite pungente. Mas restava ainda e sempre aquele timbre, apolíneo e magoado. Único.
É o momento de pôr ponto final nas memórias pessoais fixando dois tempos. Aquele em que, olhos ardidos de sono, subia as escadas do mirante da velha casa do antigo lugar do Encontro, entrava no quarto das maçãs, abria a janela virada ao vento Leste e, enquanto a luz da manhã recortava ao longe a suave ondulação da serra do Caramulo, gritava, em tom seco e rápido, como se tivesse medo que o rio e os campos de Águeda nos fugissem precocemente: - Acorda, Adriano! E, finalmente, aquele outro tempo, em Lisboa, em que a premonição da morte começa a surgir no discurso de Adriano. Esse discurso era construído com palavras e versos de um grande poeta, Herberto Hélder, nosso companheiro de tertúlia, hoje quase desaparecida com as mortes de António José Forte, Virgílio Martinho, Luís Pignatelli, Manuel da Fonseca e Adriano Correia de Oliveira.
Passo a contar como isso começou. Numa tarde, num dos últimos e longos fraternos convívios com ele e o Fausto, em que falávamos do livro “A colher na boca” de Herberto Hélder e mais particularmente da Elegia Múltipla, Adriano fixou-se no VII poema que leu e releu. E logo naquela tarde (depois fá-lo-ia muitas mais vezes) disse, alterando os “vinte e nove anos” do poema para que a idade ficasse mais próxima da sua, aqueles que passaram a ser para ele versos obsessivos:

Tenho trinta e nove anos ou uma onda
inesperada que me estremece a carne ou a garganta
cheia de sangue actual – amanhã morrerei

Às vezes, ao caminharmos pelas ruas de Lisboa ou sentado num táxi, lá dizia para si mesmo:

Tenho trinta e nove anos
Amanhã morrerei

Não sei se Adriano sabia, na altura, da gravidade das varizes esofágicas de que sofria. De qualquer modo as palavras de Herberto são duplamente premonitórias se pensarmos no amanhã dos quarenta anos (1942-82) e no modo como o trovador morreu (rompimento de varizes esofágicas). Mais tarde, já perto da morte, eram outras as palavras, todavia ainda de Herberto Hélder, que frequente e inesperadamente disparava:

Se a veia
violenta que me atravessa a cabeça se torna
ígnea
ou apenas: se a veia violenta

Adriano nunca cantou poemas de Herberto Hélder mas foi um poeta, em cuja obra releva, pela sua ímpar qualidade, a temática do amor e da morte, quem lhe forneceu, de forma perturbante, a matéria verbal para ele cantar antecipadamente a sua própria morte. Apenas a idade foi corrigida e a veia violenta ligeiramente deslocada. E por aqui fica esta incursão nos terrenos da memória. Há que passar, ainda que muito brevemente, a um pouco da história do cidadão, do compositor e cantor Adriano Correia de Oliveira.
Adriano Correia de Oliveira foi uma figura marcante na praça da canção onde começou a erguer a sua voz "pura e alta e lírica", em 1960, sobre o impulso das guitarras e violas do fado de Coimbra. Na verdade os seus primeiros discos (1960, 61 e 62) são de fados de Coimbra em que Adriano, com 18, 19, 20 anos, se revela imediatamente como um belíssimo intérprete, apesar das más condições de gravação, dotado de magnífica voz, com um timbre inigualável. Esses discos prosseguem a melhor tradição da música Coimbrã - a que de Artur Paredes e Edmundo de Bettencourt chega até António Portugal, Fernando Machado Soares, José Afonso e Luiz Goes.
Porém, Adriano Correia de Oliveira será, depois de 1963 e do estrondoso êxito do seu disco "Trova do Vento que Passa", um artista em permanente movimento, agitando as águas mais fundas do subterrâneo rio da História, lutando, solidário, ao lado dos que abriam os caboucos da Revolução dos Cravos.
A sua voz e o seu canto davam sinal das mudanças necessárias e a prosseguir no meio estudantil que fora sacudido pelas grandes lutas de 1962, mas logo se alargam à denúncia do fascismo e à incitação à resistência:

Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não

Eis o trovador à solta por terras do seu país, levando a todo o lado onde a sua mensagem podia florir um propósito de luta e um halo de esperança:

Venho dizer-vos que não tenho medo
A verdade é mais forte que as algemas

E o seu canto prossegue dinamitando os desvãos do fascismo, sacudindo as consciências, semeando a coragem. Canto de liberdade, de resistência, de instigação à luta, de esperança, mas também canto de denúncia determinada firme. São os esconsos mais negros da ditadura que a voz do trovador vai esventrar e trazer para a luz do dia, através de poemas de Manuel Alegre, Manuel da Fonseca, Urbano Tavares Rodrigues, Luís Andrade (Pignatelli) e tantos outros, a guerra colonial, as cadeias políticas, a PIDE, o exílio, as opressões político-económico-sociais.
A audição atenta da obra de Adriano Correia de Oliveira permite-nos detectar nela quatro grandes campos de significação: o do amor, vivificado pelo companheirismo e pela solidariedade, o da denúncia e resistência ao fascismo, o da luta pela liberdade e o de um olhar ideológico sobre a sociedade portuguesa.
A leitura conjugada destas quatro grandes unidades semânticas desvelará o significado mais profundo e complexo do legado artístico que nos deixou, transmitido por uma voz cuja altura e cujo timbre produziu por si só a mais "pura e alta e lírica" imagem da tristeza de um povo e também da sua coragem no combate por um futuro melhor. Por isso ele permanece entre nós tantos anos depois da sua morte.
E ficará para sempre.
*
Paulo Sucena enviou-me o e-mail seguinte, sobre o que atrás foi escrito:
Primeira parte de um texto publicado num volume colectivo por uma rapaziada de Coimbra numa editora chamada Amararte (acho que é assim, não estou bem certo do nome). A 2ª parte é o texto que vem no livro que acompanha a obra completa que o Niza organizou, aliás sem o meu total acordo, porque achava, e acho, que se deveria respeitar um critério cronológico relativamente à edição dos discos.

1 Comentários:

Blogger Luís Reis disse...

Olá amigos! Para quem sente ou sentiu o Desporto em Coimbra deixo-vos um link

www.desportocoimbra.com

Abraço e boa continuação!

14 de abril de 2009 às 19:14  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial